quinta-feira, 30 de outubro de 2008

Perplexa, porém...

Perdi um filho há pouco tempo. Melhor diria, o devolvi aos braços do Pai. Ele entrou em descanso depois de uma luta corajosa contra o câncer, e a minha vida agora precisa se recompor.

Leio artigos e vejo filmes que falam do luto. Carrego comigo uma imensa necessidade de significar este tempo de perplexidade diante da morte e da vida que segue adiante.

Alguns artigos apontam fases para o enlutado. Confesso que tentei me enquadrar em algumas, mas não me vi em muitas delas. Outras vezes, me vi em tantas ao mesmo tempo, que isso não me ajudou. Corro o risco de tentar corresponder a um comportamento esperado de uma mãe que perde um filho querido. Não vale a pena somar este desgaste à dor que carrego.

Um médico amigo partilhou comigo algumas reflexões sobre perdas, que parecem me trazer alguma iluminação. Citando um pensador, de cujo nome não me lembro, disse que quando alguém querido morre, uma parte de nós é arrancada, sem se pedir licença. Então, o conjunto das relações que nos compõem fica mutilado, pois um objeto de nosso afeto, que antes era também sujeito de troca, passa a ser apenas receptor ausente da confusa mistura de nossos sentimentos, lembranças e desejos. Via de mão única.

A dor da perda se instaura aí, nesse vácuo relacional, e ela é um sinalizador de que um novo arranjo das relações ainda não se deu por completo. Enquanto há dor, a reorganização pessoal está em processo. A dor se despede aos poucos, quando outros esquemas pessoais e relacionais passam a conviver com uma doce lembrança, que é o espaço do outro ausente, dentro da nossa história, sem mais construir história conosco. O problema se dá quando a recomposição das relações incorpora a dor da perda por definitivo, quando ela continua historiando junto com a nossa vida e não conseguimos viver sem ela.

A Bíblia relata a história de Jacó, que optou por viver assim. Ele incorporou a dor pela perda de José ao seu “script” existencial, de tal forma que se recusou ser consolado: “Chorando descerei à sepultura para junto de meu filho” (Gn 37.35). O relato bíblico acrescenta: “E continuou a chorar por ele”.

A perda de alguém é crise que inaugura um caminho bifurcado de contradições. Ou decide-se viver sob o manto da morte do ser querido, ou assume-se a busca resoluta da reconstrução da vida. Mas o processo não é assim duplamente linear. Há atalhos ligando uma trilha à outra, traçando desvios entre elas, até alcançar uma nova síntese da trajetória, saudável ou não.

A vantagem de um relacionamento íntimo com Deus, por causa da vida e morte de Jesus, se coloca como um grande diferencial nesses momentos. A presença do Pai reveste o luto diariamente com o consolo que é inerente ao seu Espírito, o Consolador-mor, desde que não nos recusemos ser consolados. O apóstolo Paulo afirma: “Ficamos perplexos, mas não desesperados”. Como cristãos estamos tão sujeitos às intempéries desta vida como qualquer outra pessoa. Só temos um recurso poderoso a mais para passar por elas.

Eu não poderia cogitar a idéia de enlutar e lutar sem a presença santa e consoladora do Espírito de Deus em mim. Viver o luto é aprendizado necessário e permanente de escolha, quiçá pela vida. Isso é tanto mais possível quando nos deixamos conduzir pelo Espírito, única fonte de vida eterna, desfrutada aqui e após este curto tempo de existência terrena, quando poderemos também reencontrar nossos queridos. Digo a mim mesma um ressonante e esperançoso amém, ainda em tempos de luto.

Autor:
• Silvana Pinheiro Taets é pedagoga e escritora de literatura infanto-juvenil. Seu filho André, de 17 anos, morreu no dia 19 de junho de 2008, vítima de cancro.

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