quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Formação espiritual - Richard Foster


"O trabalho de formação nos ensina a dar as costas às nossas vontades e focar necessidades reais, como a de anular o ego, tomar a nossa cruz e seguir arduamente Jesus."

O mundo cristão de hoje clama pelo crescimento de uma teologia que trabalhe na cruel realidade da vida diária. Infelizmente, muitos têm desistido da possibilidade de crescimento em relação à formação espiritual. Um vasto número de pessoas bem intencionadas tem se exaurido no trabalho da igreja e descoberto que isto não influencia substancialmente suas vidas espirituais. Elas descobriram que simplesmente eram impacientes, egocêntricas e medrosas quando começaram a carregar o fardo pesado do trabalho na igreja. Talvez até mais.

Outros têm submergido em múltiplos projetos de trabalhos na área do serviço social. Mas quando o ardor de ajudar aos outros esfria por um tempo, eles percebem que tantos esforços hercúleos deixaram poucas marcas duradouras em sua vida interior. De fato, deixaram-nos mais doloridos pela frustração, raiva e amargura. Há também os que ainda têm uma prática teológica que não permite crescimento espiritual. Havendo sido salvos pela graça, essas pessoas têm ficado paralisadas nisso. A tentativa de qualquer progresso espiritual tem um sabor de “obras de retidão” para eles. Sua liturgia diz que eles pecam em palavras, pensamentos e atitudes diárias; então, pensam ser esse seu destino até morrerem. A perspectiva do Céu é o seu único alívio nesse mundo de pecado e rebelião. Conseqüentemente, essas pessoas bem intencionadas vão sentar em seus bancos na igreja – e, passado algum tempo, vão perceber que nenhum avanço foi feito em suas vidas com Deus.

Há um mal-estar geral que nos toca a todos. Parece que nos acostumamos à normalidade da disfunção. A constante exploração da mídia em relação às torrentes de escândalos, vidas partidas e mazelas de toda sorte nos deixa não muito mais do que simplesmente chateados. Temos que esperar um pouco mais do que isso, ao menos de nossos líderes religiosos – talvez, especialmente de nossos líderes. Esta disfunção em toda parte é tão infiltrante que é quase impossível termos uma visão clara do progresso espiritual. Modelos exuberantes de santidade são raros hoje em dia; entretanto, ecoando através dos séculos até aos dias de hoje, estão inúmeras testemunhas que nos contam sobre uma vida muito mais abundante, profunda e completa. Em qualquer posição social ou em qualquer situação da vida, eles encontraram uma vida de “retidão, paz e alegria no Espírito Santo”, possibilidade descrita em Romanos 14.17.

Eles descobriram que uma transformação real, à imagem de Cristo, é possível. Viram suas paixões egocêntricas darem lugar a um coração abnegado e humilde. Há mais de 2 mil anos, registros das vidas de grandes pessoas – Agostinho, Francis, Teresa, Kempis e muitos outros – provam que seguir arduamente nos caminhos de Jesus torna o caráter ilibado. Os registros estão aí para quem quiser ver. Há trinta anos, desde quando Celebration of Discipline(“Celebração da disciplina”) foi escrita, nós enfrentamos duas grandes incumbências: a primeira é que foi preciso rever a grande discussão sobre a formação da alma; a segunda foi encarnar esta realidade nas experiências diárias na vida individual, congregacional e cultural. Francamente, nós temos tido sucesso na primeira tarefa. Todos os tipos de cristãos agora sabem da necessidade de formação espiritual.

É a segunda tarefa que precisa consumir a parte principal de nossa energia nos próximos 30 anos. Se nós não fizermos um progresso real nessas frentes, todos os nossos esforços vão evaporar e secar. Deus tem dado a cada um de nós a responsabilidade de “crescer em graça” (II Pedro 3.18). Isto não é algo que possamos transferir para os outros. Nós temos que tomar as nossas cruzes individuais e seguir os passos do Cristo crucificado e ressurreto.

Todo trabalho de formação autêntico consiste em “trabalhar o coração”. O coração é a fonte de toda ação humana. Todos os mestres religiosos constantemente nos chamam, quase de forma enfadonha, para que nos voltemos e purifiquemos os nossos corações. Os grandes sacerdotes puritanos, por exemplo, mantiveram a atenção nesse ponto. Em Mantendo o Coração, John Flavel, um puritano inglês do século 17, adverte que “a maior dificuldade na conversão é ganhar o coração para Deus; e a maior dificuldade após a conversão é manter o coração com Deus”. Quando estamos trabalhando o nosso coração, as atitudes externas nunca são o centro da nossa atenção. Atitudes visíveis são o resultado natural de algo profundo, bem mais profundo.

A máxima do patriarca Actio – “As atitudes seguem a essência” – nos lembra que a nossa atitude está sempre em acordo com a realidade interna do nosso coração. Isso, naturalmente, não reduz as boas obras à insignificância, mas as tornam questões secundárias; meros efeitos, e não causas. O significado principal é a nossa união vital com Deus, nossa nova criação em Cristo, nossa imersão no Espírito Santo. É essa vida que purifica o coração. Quando o ramo é perfeitamente unido à videira, que é o Senhor, o fruto espiritual é natural.

Somos todos uma massa de motivos emaranhados: esperança e medo, fé e dúvidas, simplicidade e arrogância, honestidade e desonestidade, sinceridade e falsidade. Deus é o único que pode separar o verdadeiro do falso; o único que pode purificar as motivações do coração. Mas o Senhor não vem sem ser convidado. Se alguns compartimentosdo nosso coração nunca experimentaram o toque de cura de Deus, talvez seja porque não temos recebido bem o minucioso exame divino.O mais importante, mais real e mais duradouro acontece nas profundezas do nosso coração; este é um trabalho solitário e interno, que não pode ser visto por pessoa alguma, a não ser por nós mesmos. É um trabalho que somente Deus conhece. É o trabalho de purificação do coração, de conversão da alma, da transformação interior e da formação da vida.

O primeiro passo é nosso retorno à luz de Jesus. Para alguns, este é uma inescrutável e lenta jornada; para outros, é um momento instantâneo e glorioso. Em ambos os casos, nós estamos começando a confiar em Jesus, para aceitá-lo como sendo a nossa vida. Nascer espiritualmente é um começo – um maravilhoso e glorioso começo –, e não um final.

Mas o trabalho de formação mais intenso é necessário antes de nos colocarmos diante do brilho do Céu. É necessário muito treinamento para sermos o tipo de pessoa segura e reinarmos tranqüilamente com Deus. Então, agora nós estamos dando início a esse novo relacionamento. Como Pedro coloca em sua primeira carta, nós “temos nascido de novo, não de uma semente perecível, mas imperecível, vivendo e permanecendo na Palavra de Deus” (I Pedro 1.23). Deus está vivo! Jesus é real e atuante em nossas pequenas vidas, que são fraturadas e fragmentadas. Como Thomas Keely sustenta, nós estamos vivendo em “uma luta intolerável de agitação”. Nós sentimos a força de atração de muitas obrigações e tentamos cumpri-las todas. E estamos, conforme suas palavras, “infelizes, intranqüilos, extenuados, oprimidos e tememos fracassar”. Mas, através do tempo e da experiência – às vezes, muito tempo e muita experiência –, Deus começa a nos dar um sossego surpreendente. Nas profundezas do nosso ser, a alternância nos dá uma vida coesa intacta, de humilde adoração diante da viva presença de Deus. Não se trata de êxtase, mas de serenidade, sem abalos e firmeza de orientação da vida.

Nas palavras de George Fox, nós nos tornamos homens e mulheres “estáveis”. Então, começamos a desenvolver um hábito de orientação divina. O trabalho interior da oração torna-se muito mais simples agora. Lentamente, descobrimos pequenos reflexos de proteção celeste e os sopros de submissão são tudo o que é preciso para nos atrair para uma orientação habitual de nossos corações voltados para o Senhor.

Por trás do primeiro plano da vida diária, permanece a bagagem da orientação celestial. Esta é a formação de um coração diante de Deus. Para usar as palavras de Kelly, é “uma vida despreocupada de paz e poder. É simples. É sereno. É espantoso. É triunfante. É radiante. Não toma tempo algum, mas ocupa todo o nosso tempo”. Como os novatos em Jesus, estamos aprendendo, sempre aprendendo – a como viver bem, a como amar a Deus bem, e como amar nossa família, nossos amigos – e até mesmo os nossos inimigos – bem. Aprendemos também a como estudar bem; a enfrentar bem as adversidades; a administrar nossos negócios e instituições financeiras bem; a formar uma vida em comunidade bem; a alcançar os marginalizados bem; e a morrer bem. E, enquanto aprendemos como viver bem, compartilhamos com outros o que estamos aprendendo. Esta é a estrutura do amor para edificar o corpo de Cristo.

Todavia, não estamos sozinhos neste trabalho de reforma do coração. É imperativo que nos ajudemos uns aos outros e de todas as maneiras que pudermos. E, em nossos dias, a necessidade desesperada é pela emergência de um exército sólido de guias espirituais treinados, que possam amorosamente estar lado a lado das pessoas, ajudando-as a discernir como andar pela fé nas circunstâncias de suas próprias vidas. Acontece que há uma idéia genuinamente ruim circulando nestes dias – a de que, se nós tivermos um determinado número de cursos e lermos determinada quantidade de livros, estaremos prontos para sermos guias espirituais. Lamentavelmente, a coisa não é tão simples assim. Mas o treinamento de vidas demanda o desenvolvimento da retidão, alegria e paz no Espírito Santo. Isto é a qualidade de vida – habilidade para perdoar quando se está machucado, o desejo de orar – que estamos procurando na vida de guias espirituais treinados.

Neste ponto, temos uma dificuldade real, porque cada um pensa em transformar o mundo – mas onde estão aqueles que pensam em transformar a si mesmos? As pessoas podem genuinamente querer ser boas, mas raramente estão preparadas para fazer o que é necessário para produzir uma vida de bondade que possa transformar a alma. Sim, a formação pessoal à imagem de Cristo é árdua e longa. A busca pela comunhão que agrega poder naturalmente leva à nossa segunda grande arena de trabalho para os anos vindouros: a renovação congregacional.

Se em nossas igrejas nós não trabalhamos arduamente pela formação espiritual, não conseguiremos pessoas espiritualmente formadas. O problema é que nós temos em nossas igrejas a “doença da pressa”. Muitos do nosso povo são viciados em adrenalina – e, em toda parte, o espírito de nossos dias é de pular, empurrar, atropelar, produzir ruídos, atrair multidões. Mas o trabalho de formação espiritual simplesmente não acontece com pressa. Ele nunca é um “assunto rápido”, como se diz. Paciência e cuidado com o tempo consumido são sempre as marcas de qualidade do trabalho de formação espiritual.

Outra situação contextual que enfrentamos é o fato de que nós agora temos uma indústria de entretenimento cristão que é disfarçada como adoração. Ora, como nós compareceremos em reverência e temor diante do Santo de Israel, quando muitos de nossos cultos são focados em diversão? Um terceiro assunto: nós estamos lidando com uma mentalidade consumista em toda parte que, simplesmente, domina o cenário religioso. Essa mentalidade mantém as demandas individuais sempre à frente e no centro de tudo: “Eu quero o que eu quero, quando eu quero e quanto eu quero”. Naturalmente, o trabalho de formação nos ensina a dar as costas às nossas vontades e focar necessidades reais, como a de anular o ego, tomar a nossa cruz e seguir arduamente Jesus.

Todas estas e outras coisas mais tornam o trabalho de formação espiritual em uma congregação realmente complicado. Mas é uma tarefa possível! Primeiro, isto significa que queremos experiências profundas de comunhão através do poder da formação espiritual. A Igreja é reformada e sempre está se reformando. E, se nosso coração, alma, mente e espírito estão sendo reformados – ou seja, se ansiamos por conhecer, seguir e servir a Jesus, sendo formados à semelhança dele –, então seremos poderosamente atraídos na direção de todos aqueles que têm o mesmo anelo. Uma pessoa cheia da beleza de Jesus tem comunhão adicionada ao poder – e os outros serão irresistivelmente atraídos na direção desta pessoa.

Segundo, vamos fazer tudo o que podemos para desenvolver aecclesiola naeclésia – “a pequena igreja dentro da Igreja”. Aecclesiola naeclésia é um compromisso profundo com a vida do povo de Deus, e não um comportamento sectário. Nenhuma separação. Nenhuma exclusão. Nenhuma formação de nova denominação ou igreja. É preciso que fiquemos dentro das estruturas estabelecidas da igreja e, aí sim, desenvolvamos pequenos centros de luz dentro dessas estruturas. A partir daí, é só deixar a nossa luz brilhar. Isto produz uma unidade de coração, alma e mente, um vínculo que não pode ser quebrado – um milagre, enfim –, abastecido de cuidado, mutualidade e compartilhamento de vida juntos que nos levará a enfrentar as circunstâncias mais difíceis.

A última instância é a do compartilhamento do sofrimento. Não devemos nos enganar – o nosso tempo de sofrimento está chegando. Uma multidão de fatores levará a isso. Por exemplo, a cultura geral de hostilidade para as coisas concernentes ao Cristianismo está crescendo. Não devemos ficar surpresos ou mesmo tentar mudar isso. O que nós, como Igreja, deveríamos estar fazendo é construir uma vida comunitária sólida para que, quando o sofrimento chegar, não estejamos dispersos. Ao invés disso, devemos ficar juntos, orar juntos e sofrer juntos, independente do que vamos enfrentar. O sofrimento em comunhão pode ser um bom modo que Deus usará para um novo ajuntamento do povo e Deus.

Os mestres religiosos escreveram muito sobre o treinamento do coração em duas direções opostas: contemptus mundi, o rápido desprendimento das ambições; e amor mundi, quando nosso ser é arremessado para uma divina, porém dolorosa, compaixão pelo mundo. No começo, Deus arranca o mundo de nossos corações –comtemptus mundi. Experimentamos um rompimento das correntes que nos atraem para posições proeminentes e de poder; passamos a viver livre e alegremente, sem enganos. E, então, quando nos libertamos de tudo isso, Deus lança o mundo de volta ao nosso coração – é o amor mundi –, quando nós e Deus, juntos, tomamos o mundo em infinita ternura e amor. Nós aprofundamos a nossa compaixão pelos feridos, pelos arruinados, pelos despossuídos. Sofremos, oramos e trabalhamos por outros de uma maneira diferente, de uma forma abnegada, cheia de alegria. Nosso coração fica estendido em direção aos marginalizados. Nosso coração fica voltado para todas as pessoas, para toda a Criação.

Foi o amor mundi que atirou Patrick de volta à Irlanda para responder à sua pobreza espiritual. Foi o amor mundi que impulsionou Francisco de Assis para o seu ministério mundial de compaixão por todas as pessoas, por todos os animais, por toda a Criação. Foi o mesmo sentimento que levou Elizabeth Fry às portas do inferno da prisão de Newgate e induziu William Wilberforce a trabalhar a sua vida inteira pela abolição do comércio escravo; ou que fez Padre Damião viver, sofrer e morrer entre os leprosos de Molokai e impulsionou Madre Teresa de Calcutá a ministrar entre os mais pobres entre os pobres da Índia e do mundo todo. E é esseamor mundi que compele milhões de pessoas comuns, como você e eu, a ministrar vida no nome bom de Cristo a quem nos cerca.

(Tradução: Ana Maria Rocha Neves)

Fonte: Cristianismo Hoje


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