Intimidade e libertação
Fala-se muito hoje em dia sobre intimidade. É a palavra da moda. Todos querem ser íntimos de Deus, do cônjuge, da namorada ou do amigo. Os programas de televisão e de rádio de maior audiência são aqueles que expõem a intimidade dos outros. As revistas de maior vendagem são aquelas que fofocam e comentam a intimidade de pessoas famosas. É comum ouvir nas ruas comentários sobre a vida íntima das celebridades, sobre suas casas, plásticas e relacionamentos, como se fossem velhas conhecidas. O sucesso do Big Brother está exatamente em expor a intimidade dos outros. Casais expõem-se na televisão. Todos querem mostrar o que são e o que pensam. Querem mostrar o corpo e a alma. Vivemos a era de Narciso.
Nas igrejas não é diferente. Boa parte das músicas que cantamos buscam promover uma adoração mais intimista. Cantamos essas músicas com um tom de voz bem diferente daquele que marcou os cânticos de guerra com suas melodias marciais. É preciso “sentir” a presença de Deus, repetir estrofes até que provoquem algum tipo de êxtase. Nas orações predominam os pronomes da primeira pessoa: meu, para mim. Tenho a impressão de que o conceito de intimidade vem adquirindo, cada vez mais, uma forte conotação sexual e intimista. Imagino que o “ficar”, no relacionamento avulso dos jovens e adolescentes pós-modernos, seja o comportamento que melhor descreve o significado de intimidade hoje. Algo passageiro, descomprometido, impessoal, intenso, egoísta e prazeroso. Certa vez ouvi alguém dizer que quando louva a Deus é como se estivesse “dançando com o rosto coladinho em Jesus”.
Estou casado há 28 anos e considero que minha esposa e eu conquistamos um razoável nível de intimidade, ao longo desse anos. Contudo, não consigo imaginar como seria nossa vida se vivêssemos o tempo todo trancados num quarto, trocando declarações apaixonadas, num êxtase interminável. Certamente não suportaríamos isso por muito tempo. A nossa intimidade envolve nossas diferenças e conflitos, longas conversas seguidas de silêncio. Envolve nossos filhos e amigos, alegrias e tristezas, sofrimentos e esperanças. Envolve responsabilidades e rotinas, trabalho e contas para pagar. É uma intimidade que tem seus momentos reservados, é claro, mas a maior parte do tempo ela é experimentada e vivida publicamente. Tenho me preocupado com o modelo de espiritualidade intimista que vem sendo proposto, que, de certa forma, é uma versão religiosa do individualismo narcisista da cultura pós-moderna, uma versão religiosa do “ficar”. Ficamos com Deus em alguns momentos no culto, mas o que acontece antes ou depois dele não tem nada a ver com a intimidade. Ela só existe naquele momento, com aquelas sensações. É um modelo de intimidade e espiritualidade que não contempla a riqueza dinâmica da vida da fé. Seguir a Cristo no caminho do discipulado nos envolve numa espiritualidade cuja intimidade se dá num processo dinâmico de relacionamento, em que a confissão “Aba-Pai” acontece ao lado da confissão “Kyrios-Cristo”. Ambas dão o equilíbrio necessário a uma espiritualidade que é integral e pessoal, pública e privada, missionária e contemplativa.
A intimidade que Cristo nos propõe acontece num caminho e envolve todas as estações da vida. Ele nos chama para orar, mas também para lavar os pés uns dos outros. Ele nos chama para viver numa comunhão amorosa e segura com o Pai, mas também para confrontar os poderes que aprisionam e oprimem o ser humano. Ele nos chama para o silêncio e solitude, mas também para a proclamação profética e libertadora. É uma espiritualidade que precisa estar presente na economia e na política, na igreja e no quarto. O intimismo intoxica, a intimidade liberta. O intimismo é narcisista e exclusivista, a intimidade é pessoal e comunitária. A imitação de Cristo é o caminho mais seguro para uma intimidade libertadora.
Fonte: Ricardo Barbosa de Sousa é pastor da Igreja Presbiteriana do Planalto e coordenador do Centro Cristão de Estudos, em Brasília. É autor de Janelas para a Vida e O Caminho do Coração.
Sem comentários:
Enviar um comentário