Autor: Tim Keller (pastor da igreja Redeemer Presbyterian, em Nova York.)
Como pregar "boas" novas e o mal em um tempo repleto de pessoas tradicionalistas e pós-modernas?
O jovem presente em meu escritório estava vestido de maneira impecável e era bastante articulado. Ele possuía um certificado de MBA da Ivy League, era bem sucedido no mundo financeiro e já havia vivido em três países diferentes antes de completar 30 anos de idade. Criado em uma família ligada, de maneira mais liberal, à igreja, ele possuía pouco conhecimento sobre o cristianismo.
Fiquei, portanto, satisfeito ao saber de seu enorme interesse espiritual, despertado quando ele começou a frequentar nossa igreja. Ele disse que estava pronto para abraçar o evangelho. Mas ainda existia um obstáculo.
Ele disse: "Você disse que, se não acreditarmos em Cristo, estamos perdidos e condenados. Sinto muito, mas não consigo engolir isso. Eu trabalho com muitas pessoas legais, que são muçulmanas, judias e agnósticas. Eu não consigo acreditar que elas vão para o inferno só porque não creem em Jesus. Na verdade, eu sequer consigo conciliar a ideia de inferno com um Deus amoroso -- mesmo que Ele seja santo".
Esse jovem expressou o que pode ser a principal objeção que os seculares contemporâneos fazem em relação à mensagem cristã. (A segunda objeção seria, a meu ver, a questão do mal e do sofrimento). Essas pessoas rejeitam a ideia do juízo final e do inferno.
Portanto, é grande a tentação para se evitar esse assunto nas pregações. Mas negligenciar doutrinas desagradáveis da fé histórica pode trazer consequências contrárias. Existe um equilíbrio ecológico ligado à verdade bíblica que não deve ser perturbado.
Se uma determinada área fica livre de seus animais predadores e indesejáveis, o equilíbrio desse ambiente pode ser tão abalado que as plantas e os demais bichos inofensivos ficariam perdidos – se reproduzindo em excesso e tendo uma oferta limitada de alimentos. O predador indesejável, que foi eliminado, na verdade, era quem mantinha o número dos outros animais e plantas em equilíbrio. Da mesma forma, se enfraquecermos as doutrinas "ruins" e difíceis da fé cristã, descobriremos, para nossa surpresa, que destruímos também todas as crenças acolhedoras e agradáveis.
A perda da doutrina do inferno e do juízo e da santidade de Deus traz danos irreparáveis às nossas mais profundas sensações de conforto -- nossa compreensão da graça e do amor de Deus, assim como da nossa dignidade humana e do nosso valor diante d'Ele. Para pregar as "boas" novas, devemos pregar também o mal. Mas como fazer isso nessa era da tolerância?
Como pregar o inferno para tradicionalistas
Antes de pregar sobre o inferno, preciso reconhecer que, hoje, uma congregação é composta de dois grupos: os tradicionalistas e os pós-modernos. esses dois grupos recebem a mensagem sobre o inferno de formas completamente diferentes.
Pessoas de culturas e mentalidades tradicionais costumam ter (a) a crença em Deus, e (b) um forte senso de valores morais absolutos e um senso de obrigação de serem bons. Essas pessoas costumam ser mais velhas, e têm, geralmente, fortes origens católicas e judaicas, ou origens evangélicas/pentecostais conservadoras, do sul dos Estados Unidos ou de países não-europeus da primeira geração de imigrações.
A melhor maneira de mostrar a pessoas conservadoras, sua necessidade do evangelho, é dizendo: "O seu pecado lhe separa de Deus! Você nunca será íntegro o bastante para Ele". Os tradicionalistas têm horror à imperfeição. Eles são atraídos em direção a Deus através da ideia do castigo eterno no inferno. Eles percebem a gravidade do pecado.
Porém, esses tradicionalistas podem responder ao evangelho só por medo do inferno, a menos que eu lhes mostre que Jesus experimentou não apenas a dor em geral, na cruz, mas também o inferno, em particular. Isso precisa ser destacado até que eles sejam atraídos a Cristo pela beleza do amor incomparável que ele demonstrou por nós. Para essas pessoas tradicionais, o inferno deve ser pregado como a única maneira de sabermos o quanto Cristo nos amou.
Esta é uma das maneiras como preguei sobre o assunto:
"É preciso que entendamos essa terrível doutrina, caso contrário jamais seremos capazes de compreender a profundidade do que Jesus fez por nós na cruz. Seu corpo foi destruído da pior maneira possível, mas isso não é nada comparado com o que estava acontecendo com sua alma. Quando ele gritou, afirmando que Deus o havia abandonado, ele estava experimentando o próprio inferno.
Quando um simples conhecido lhe rejeita, isso dói. Quando um amigo íntimo faz o mesmo, a dor é muito pior. No entanto, se seu cônjuge lhe abandona, dizendo: 'Eu nunca mais quero ver você', é mais devastador ainda. Quanto mais longo, profundo e íntimo for um relacionamento, mais torturante é a separação.
Mas a relação entre o Filho e o Pai era eterna, e infinitamente maior do que qualquer relação humana, mesmo a mais íntima e apaixonada. Quando Jesus foi separado de Deus, ele entrou no mais profundo poço, mais do que se possa sequer imaginar. E ele o fez voluntariamente, por nós."
Como pregar o inferno para pós-modernos
Em contraste com os tradicionalistas, os pós-modernos são hostis à ideia de inferno. Pessoas com uma mentalidade mais secular costumam ter (a) apenas uma vaga crença no divino, se tiverem, e (b) um fraco senso de valores morais absolutos, junto com um sentimento de que precisam ser fiéis a seus sonhos. Eles costumam ser mais jovens, e geralmente são católicos não-praticantes, têm origens judaicas não- religiosas, ou origens no protestantismo liberal, do oeste e nordeste dos Estados Unidos ou da Europa.
Ao pregar o inferno a pessoas com essa mentalidade, descobri que devo me utilizar de quatro argumentos:
1. Pecado é escravidão. Eu não defino o pecado como sendo apenas uma violação das regras, mas sim como "ter algo, que não seja Deus, como fonte de valor". Essas coisas boas, que se tornam ídolos, conduzirão nossas vidas incansavelmente em direção ao inferno, se permitirmos, nos escravizando mental e espiritualmente.
Eu digo: "Você está sendo religioso, embora não perceba. Está tentando encontrar a salvação através da adoração a coisas que acabam lhe controlando de maneira destrutiva". Os pós-modernos têm horror à escravidão.
As representações feitas por CS Lewis do inferno são importantes para os pós-modernos. Em O Grande Abismo, Lewis descreve um ônibus cheio de pessoas vindas do inferno, chegando aos arredores do céu. Lá, eles são convidados a deixarem os pecados que os levaram ao inferno. As descrições que Lewis faz das pessoas no inferno são tão marcantes porque reconhecemos a negação e a auto ilusão de nossa dependência de substâncias. Quando somos viciados em álcool, ficamos infelizes, mas culpamos outras pessoas e sentimos pena de nós mesmos; não assumimos responsabilidade por nosso comportamento e nem vemos as raízes de nossos problemas.
Lewis escreve: "O inferno... começa com uma murmuração, e você ainda separado desse lugar; talvez até mesmo o criticando... Você pode se arrepender e sair dali. Mas pode chegar o dia em que já não poderá mais fazer isso. E então, você não mais existirá para criticar o clima, ou mesmo aproveitá-lo, existirá apenas a murmuração em si, que durará para sempre, como uma máquina".
As pessoas modernas têm dificuldade para aceitar a ideia de um Deus que puna pessoas desobedientes. Quando o pecado é visto como escravidão e o inferno como uma livre escolha, a masmorra eterna do universo, o inferno se torna muito mais compreensível.
Aqui está um exemplo de como tentei explicar isso recentemente em um sermão:
"Em primeiro lugar, o pecado nos separa da presença de Deus (Isaías 59:2), que é a fonte de toda a alegria (Salmos 16:11), amor, sabedoria, ou boa dádiva de qualquer tipo (Tiago 1:17)...
Em segundo lugar, para entender o inferno, precisamos entender o pecado como escravidão. Romanos 1:21-25 nos diz que fomos criados para viver para Deus, mas em vez disso, vivemos buscando sentido e valor através de amor, trabalho, realizações ou moralidade. Assim, todas as pessoas, sejam religiosas ou não, estão adorando a alguma coisa – ídolos, pseudo-salvadores – para obter valor. Mas essas coisas nos escravizam com culpa (se não conseguirmos atingi-las), raiva (se formos impedidos por alguém de atingi-las), medo (se elas forem ameaçadas) ou com compulsão (já que sentimos que precisamos tê-las). Culpa, raiva e medo são como fogo que nos destrói. Pecado é adorar a qualquer coisa que não seja Jesus – e o salário do pecado é a escravidão.
Talvez o maior paradoxo de todos seja o fato de que as pessoas no ônibus vindo do inferno, da obra de Lewis, estão escravizadas porque escolheram isso livremente. Elas preferiram ter sua liberdade (a ideia que têm de liberdade) do que a salvação. Seu grande erro foi acreditar que ao glorificarem a Deus, perderiam sua grandeza humana (Gênesis 3:4-5), mas foi justamente a escolha que fizeram que arruinou essa grandeza. O inferno é, como diz Lewis, "o maior sepulcro à liberdade humana".
2. O inferno é menos exclusivo do que a chamada tolerância. Nada é mais característico da mentalidade moderna do que a afirmação: "Eu acho Cristo legal, mas acredito que um muçulmano ou budista devoto, ou até mesmo um ateu podem encontrar a Deus". Uma versão ligeiramente diferente é: "Eu não acredito que Deus mandaria uma pessoa boa para o inferno só porque ela não escolheu a crença certa". Essa abordagem é vista como mais inclusiva.
Então, ao pregar sobre o inferno, eu preciso combater esse argumento:
"A religião universal da humanidade é: nós desenvolvemos um bom histórico, o entregamos a Deus, e então ele fica nos devendo. O evangelho é: Deus desenvolve um bom histórico e nos dá e, então, nós, devemos a ele (Romanos 1:17). Em suma, dizer que uma pessoa boa, e não apenas os cristãos, podem encontrar a Deus, é o mesmo que dizer que boas obras são suficientes para encontra-lo.
Você pode não acreditar que a fé em Cristo seja necessária, ou pode acreditar que somos salvos pela graça, mas não pode acreditar nas duas coisas ao mesmo tempo. Portanto, a abordagem aparentemente inclusiva, é na verdade bastante exclusiva. Ela diz: 'As pessoas boas podem encontrar a Deus, as más, não'. Mas e nós, fracassos morais? Nós estamos excluídos.
O evangelho diz: 'As pessoas que sabem que não são boas, podem encontrar a Deus, as que pensam que são boas, não'.
Então o que acontece com aqueles que não são cristãos, os quais devem, por definição, acreditar que seus esforços morais o ajudarão a alcançar a Deus? Também estão excluídos.
Portanto, ambas as abordagens são exclusivas, mas o evangelho possui a exclusividade mais inclusiva. Ele diz alegremente: 'Não importa quem você é, ou o que você fez. Não importa se já esteve às portas do inferno. Você é bem-vindo e totalmente aceito através de Cristo'."
3. A visão cristã do inferno é mais pessoal do que a visão alternativa. Com bastante frequência, encontro pessoas que dizem: "Eu tenho um relacionamento pessoal com um Deus amoroso, mas não creio em Jesus Cristo". "Por quê?", eu pergunto.
Elas respondem: "Porque o meu Deus é amoroso demais para derramar sofrimento infinito em quem quer que seja por causa do pecado".
Mas, uma questão permanece: "O que custou a esse Deus nos amar e aceitar? O que ele suportou, a fim de nos receber? Onde esse Deus agonizou e clamou? Onde estavam seus pregos e espinhos?
A única resposta que recebo é: "Não acho que isso era necessário".
Que irônico. Em nosso esforço para tornarmos Deus mais amoroso, acabamos por torna-lo menos amoroso. Seu amor, no final das contas, não precisava tomar nenhuma atitude. Tratava-se de sentimentalismo, e não de amor. A adoração a um Deus assim seria impessoal, cognitiva, ética. Não haveria uma entrega alegre, uma ousadia humilde e nem um sentimento constante de admiração. Não cantaríamos a tal ser: "Amor tão incrível, tão divino, exige minha alma, minha vida, meu tudo".
A "sensível" abordagem pós-moderna ao assunto do inferno é, na verdade, bastante impessoal. Ela diz: "Não importa se você crê na pessoa de Cristo, contanto que você siga o seu exemplo".
Mas afirmar isso é dizer que a essência da religião é intelectual e ética, e não pessoal. Se qualquer pessoa boa pode encontrar a Deus, então o núcleo essencial da religião é entender e seguir regras.
Quando prego sobre o inferno tento mostrar como esse ponto de vista é impessoal:
"Dizer que qualquer pessoa boa pode encontrar a Deus é criar uma religião sem lágrimas, sem experiência, sem contato.
Com certeza o entendimento de verdades e princípios é fundamental ao evangelho, mas esse evangelho é muito mais do que isso. A essência da salvação é conhecer uma Pessoa (João 17:3). Ao conhecer essa Pessoa, há arrependimento, choro, alegria e encontro. O evangelho nos chama a um relacionamento íntimo e apaixonado com Jesus Cristo, e chama isso de 'o cerne da verdadeira salvação'."
4. Não existe amor sem ira. O que incomoda as pessoas é a ideia do julgamento e da ira de Deus: "Não consigo acreditar em um Deus que envia as pessoas para sofrerem eternamente. Que tipo de Deus amoroso é cheio de ira?"
Por isso, ao pregar sobre o inferno, é preciso explicar às pessoas que um Deus sem ira, não pode ser amoroso. Foi assim que tentei explicar isso em um sermão:
"Quando ouço esse tipo de pergunta, respondo que qualquer pessoa amorosa, se ira. Em Hope has its reasons, Becky Pippert escreve: 'Pense em como nos sentimos quando vemos alguém que amamos devastado por relacionamentos ou atitudes insensatas. Reagimos com tolerância benigna, como faríamos com um estranho? Longe disso... A raiva não é o oposto do amor. O ódio é. E a pior expressão de ódio é a indiferença'.
Pippert então cita E. H. Gifford, 'Aqui, o amor humano oferece uma verdadeira analogia: quanto mais um pai ama seu filho, mais ele odeia que esse filho seja um bêbado, um mentiroso, um traidor'.
Ela conclui: 'Se eu, uma pecadora falha e narcisista, posso sentir tanta dor e raiva em relação à condição de alguém, quanto mais um Deus moralmente perfeito, que as criou? A ira de Deus não é uma explosão zangada, mas sim uma oposição a esse câncer que é o pecado, que está comendo as vísceras da raça humana, que ele tanto ama'.
Um Deus como esse
Após um sermão sobre a parábola de Lázaro e do homem rico, a sessão de perguntas e respostas ficou lotada, com um número de pessoas maior do que o habitual. As perguntas e comentários foram voltados ao tema do juízo eterno.
Partiu meu coração quando uma jovem universitária disse: "Eu tenho ido à igreja minha vida inteira, mas acho que não consigo acreditar em um Deus assim". Seu tom era mais triste do que rebelde, mas a sua disposição de ficar e conversar mostrou que sua mente estava aberta.
Normalmente, todas as perguntas são voltadas a mim, e eu tento responder a todos da melhor maneira possível. Mas nessa ocasião, as pessoas começaram a responder uns aos outros.
Uma empresária mais velha disse: "Bem, eu nunca fui muito à igreja, e estou em choque. Eu sempre detestei a ideia de inferno, mas nunca havia pensado nisso como uma medida do que Deus estava disposto a suportar por amor a mim".
Em seguida, um cristão maduro fez uma ligação desse assunto com uma pregação feita no mês anterior, sobre Jesus no túmulo de Lázaro, em João 11. "O texto nos diz que Jesus chorou", ele disse. "mas também ficou extremamente irritado com o mal. Isso me ajudou. Ele não é apenas um Deus irado, ou amoroso – ele é as duas coisas. Ele não apenas julga o mal, mas também assume o inferno e o julgamento por nós, na cruz".
A mulher concordou: "Sim, eu sempre pensei que o inferno mostrava como Deus estava zangado conosco, mas não sabia que também mostrava o quanto ele estava disposto a sofrer e chorar por nós. Nunca me dei conta do quanto o inferno nos fala sobre o amor de Jesus. É muito comovente".
É somente graças à doutrina do juízo e do inferno, que o anúncio da graça e do amor de Jesus é tão brilhante e surpreendente.